A vida e milagres da Rainha Santa, que nos chegou em legenda datada do séc. XIV, refere-nos que o miraculoso envolveu, desde logo, alguns aspectos extraordinários da vida de D. Isabel. E deles ressaltam relações materno-filiais, humanas ou divinas, muito vincadas. Nasce a rainha envolta numa pele que a não deixava ver, e que a sua mãe guarda amorosamente, como um bom presságio; a sua filha Constança, depois de morta, dirige-se a ela, rogando-lhe o sufrágio da sua alma; a Virgem Maria aparece-lhe por ocasião da sua morte, aliviando-a no sofrimento; do seu corpo morto jorram líquidos e odores perfumados, sinais da santidade.
Também os milagres ocorrem de imediato durante a sua vida, ainda que a rainha os quisesse ocultar. Cura pelas orações e pelo contacto das suas mãos uma monja de Chelas, uma mulher que tinha uma doença no pé, um gafo que fora espancado, a sua filha que esmorecia de dores, uma criança cega. Cura gratuitamente, quando as pessoas a vêm visitar, ou quando exerce as práticas cristãs, lavando os pés dos pobres na Quinta-feira Santa ou quando dá esmola na Sexta-feira da Quaresma, aliviando assim da doença os mais necessitados. Apenas num caso, quando a rainha ia de Coimbra para o Porto, uma mulher da Arrifana lhe veio ao caminho pedir a cura da sua filha cega, prova manifesta da difusão da sua aura de santa já em vida. A rainha curou a criança, impondo-lhe as mãos nos olhos. A mulher espalha alegremente o prodígio, todavia a rainha pede-lhe, caritativamente, o silêncio, dando roupa à mãe e à filha. Mas como se diz, as pessoas da casa da rainha sabiam.
E é justamente a partir da clientela religiosa ou laica da rainha que a sua fama de santidade, de pronto, se deve ter espalhado. As gentes do povo parecem ter de imediato aderido ao culto da Rainha Santa, dirigindo-se em preces e pedidos até ao mosteiro de Santa Clara, onde estava o seu corpo. Este mosteiro, em que se recolhiam damas da família real e da mais alta aristocracia, tê-lo-á, então, desde logo, fomentado, mais crescendo espiritual e temporalmente com a devoção à sua padroeira. Obnubilando mesmo a projecção do antiquíssimo mosteiro crúzio. Como resposta, a partir do século XV, terá havido uma revitalização do culto dos Santos Mártires de Marrocos, impulsionada pelo prior D. Gonçalo. E na Coimbra Quatrocentista, Santa Cruz e Santa Clara rivalizariam ou ombreariam na atracção dos crentes, controlando já institucionalmente o culto dos seus santos. Para o que foi necessário registar a sua vida e acreditar os seus milagres.
Milagres que são, no seu relato, um documento palpitante de vida. A relação do crente com os santos é complexa, tecida de sentimentos contrários, que oscilam entre o temor e o respeito e a fé, a esperança, a confiança e até familiaridade. Decalcada numa vivência humana do quotidiano, essencialmente contratual e mutualista, assume-se também ela como uma relação de troca, de dom e contra-dom. O que precisa invoca, pede, promete. O santo dá e recebe. O que, no limite, leva a um certo mercadejar com os santos.
Escassos foram os homens que privaram com os santos em vida e deles receberam milagres por palavras, gestos ou contactos. Mais duradoura e abrangentemente o poder taumatúrgico dos santos manifestou-se pelas suas relíquias, guardadas num lugar sagrado.
Então o crente invoca o santo, quase à semelhança de uma encantação, e roga-lhe o favor. Para logo formular a promessa. Materializada, vulgarmente, na peregrinação e oferendas. Voto e promessa que são enunciados pelo próprio ou por outrem em seu nome.
Ainda antes de realizado o milagre se podem levar até ao santuário certas oferendas, mormente de cera. Era um rito de substituição, em quer o fiel, assim materializado pela cera, ficava em contacto mais próximo com as relíquias, considerando-se prometido ao santo e, portanto, mais apto para alcançar a cura. Mas, no geral, as oferendas e os ex-votos eram em testemunho do milagre. Realizado este, e como preito de reconhecimento, depunham-se nos mosteiros ou igrejas, onde se guardavam as relíquias, oferendas simbólicas, como a cera e lâmpadas de azeite, ex-votos figurando a parte do corpo curada, objectos que haviam resultado do milagre ou oferendas compensatórias em géneros ou dinheiro.
A devoção à Rainha Santa Isabel ´+e muito marcada pela religiosidade feminina. Desde logo, dos 16 milagres realizados após a morte da santa, numa das versões dos mesmos, 10 deles operam-se em mulheres. No conjunto dos agraciados há um peso considerável de donas de Santa Clara e servidoras da rainha, para além de um monge, um clérigo, um mestre da Ordem de Cristo, um cidadão de Coimbra, entre outros não identificados, O raio de influência deste culto estendia-se até bem longe, pois há miraculados em Évora, Santarém, Alcobaça, Leiria, Condeixa, Taveiro, Lamego, além de, obviamente, Coimbra. As dores dos fiéis eram várias doenças da boca, inchaços na mão, cegueira, dores nos ossos, as hemorragias devido a sanguessugas, mas também deparamos com situações de outra natureza, como expulsão dos demónios, a libertação de um preso, ou a visita de um filho a sua mãe.
Para se obter o milagre vem-se até junto da sepultura da Rainha, beija-se o seu ataúde ou simplesmente se lhe pede, às vezes tão-só pelo gesto suplicante de erguer as mãos ao céu. O poder taumatúrgico da Santa exercia-se assim nas proximidades do seu túmulo, mas também através de relíquias de substituição, como o pano que havia servido para ligar o braço doente da rainha por ocasião da sua morte, ou ainda, pelo sono e o sonho curativos, ocorridos na própria igreja, logo bem semelháveis aos ritos de incubação da Antiguidade, como os que tinham lugar no templo de Esculápio. Significativamente, uma monja oferece-se à rainha com um ex-voto constituído por uma mão de cera. Por intermédio desta dedicação, e pela presença contínua substitutiva, a mão da religiosa ficou curada em 20 dias.
As mulheres teriam uma particular crença na Rainha Santa, também ela uma mulher. Assim o relato da sua vida apresenta-se como o modelo a seguir, sobretudo pelas damas ricas da aristocracia. Modelo de religiosidade muito humano e acessível, onde o carisma real não se reforça com um excessivo maravilhoso, antes se evidencia pelo contraste das suas virtudes de pobreza, humildade e caridade. Modelo de santidade laico e feminino, onde uma mulher se apresenta na perfeição, em todas as fases da sua vidam numa exemplaridade ética, da infância até ao matrimónio e viuvez.
Em vida, D. Isabel esteve rodeada de mulheres – as donzelas do seu séquito e as que protegeu, as fundadoras de mosteiros que apoiou, as pobres que socorreu, por fim as monjas de Santa Clara com que privou. Não admira pois que 60% dos seus milagres póstumos e 80% dos que ocorreram em vida se tenham operado em mulheres, que são ainda por vezes indutoras de alguns outros. O conjunto das beneficiárias, com um grande número de religiosas e clientes da realeza, indicia-nos uma devoção à rainha essencialmente ligada ao mundo urbano. E de um círculo mais restrito de donas se terá vulgarizado este culto entre as mulheres do povo. Para desde então até aos nossos dias a devoção à Rainha Santa Isabel atravessar todos os crentes num amplíssimo e vivo movimento de fé e culto nacional.
Maria Helena da Cruz Coelho
Falecera a Rainha D. Isabel em Estremoz, a 4 de Julho de 1336 e, no cumprimento das suas últimas vontades, logo se procedeu à trasladação do seu corpo para Coimbra, onde chegaria dias depois, sem mostrar qualquer sinal de decomposição, antes exalando, segundo a biografia com toda a probabilidade atribuÃda a D. Fr. Salvado Martins, que a lenda depois largamente confirmaria, um suavÃssimo perfume. Tendo sempre presente a acção da Rainha no exercÃcio da desvelada caridade que praticara em vida e profundamente impressionado pela incorruptibilidade do seu corpo, não tardou o povo a dar-lhe foros de santidade, fazendo do seu túmulo, na igreja do velho Mosteiro de Santa Clara, lugar de oração frequente e da sua memória via de intercessão para levar até junto de Deus as suas necessidades. Prova desse culto espontâneo, mas muito intenso, é o registo dos milagres que lhe iam sendo atribuÃdos e que pouco a pouco se juntaram à sua biografia. E é por demais significativo que a cerimónia nupcial do futuro Rei D. Duarte com Leonor de Aragão se tenha celebrado, a 22 de Setembro de 1428, na capela do coro velho da igreja de Santa Clara, junto do monumento que encerrava os seus despojos.
E foi a intensificação desse culto que levou o Rei D. Manuel I a solicitar à Santa Sé a sua beatificação, concedida pelo Papa Leão X, por breve de 15 de Abril de 1516, que, como se compreende, não só tornou oficial aquele culto espontâneo, como lhe deu novo incremento e mais disciplinada expressão, até pelo facto de tornar necessário, na diocese de Coimbra e na Capela Real, um ofÃcio próprio, tanto na missa, como nas horas canónicas, cujo texto foi redigido por André de Resende. A participação oficial da Universidade de Coimbra nesse culto, vai trazer nova e mais alta expressão à veneração da Santa Rainha. Com efeito, D. João III, por cartas de 9 de Setembro de 1556, ordenava ao Reitor da Universidade, Doutor Afonso do Prado e ao Reitor do Colégio das Artes que em cada ano ambas as instituições participassem oficialmente nas celebrações que, no dia da sua festa litúrgica, se realizassem no Mosteiro em honra de Santa Isabel.
Cerca de 1560, por decisão da Abadessa D. Ana de Meneses, e com o patrocÃnio da Rainha D. Catarina, fundava-se uma Confraria sob a sua invocação, cujos estatutos foram logo aprovados e confirmados pelo Bispo de Coimbra, D Fr. João Soares. A participação conjunta de toda a população de Coimbra nesse preito permanente prestado à sua Padroeira estava aà bem expressa pelo facto de um dos mordomos da respectiva Mesa ser um homem honrado da Cidade, sendo o outro obrigatoriamente um Estudante. Assim se compreende que, com o tempo, a Rainha D. Isabel fosse oficialmente considerada como padroeira de toda a Nação Portuguesa, da Dioceses de Coimbra e Leiria e de algumas das nossas mais prestigiosas instituições, como a Universidade e a Academia das Ciências, ou como a Misericórdia de Alvor, multiplicando-se a erecção de confrarias que a tomaram por Padroeira, algumas da quais ainda se mantêm vivas, como a de Soure ou, fora de Portugal, no Brasil e na Califórnia.
Mercê dos esforços da diplomacia portuguesa e, depois em 1580, também da espanhola, o Papa Urbano VIII decreta finalmente a canonização, em cerimónia solene ocorrida em Roma, a 25 de Maio de 1625. A notÃcia é recebida em Coimbra com grandiosas manifestações públicas e privadas, promovidas pelo Bispo D. João Manuel, pelo Cabido, pelas Ordens religiosas, numa entusiástica demonstração de vitalidade da devoção que todos consagravam à nova Santa, como bem se patenteia na Relação que dessas festas se publicou em Coimbra, logo no ano seguinte. Além deste volume merece referência especial a intervenção da Universidade, como se pode ver pelo volume Sanctissimae Reginae Elisabethae Poeticum Certamen, publicado em 1626, por iniciativa do Reitor D. Francisco de Brito Meneses.
Entretanto a progressiva ruÃna do velho mosteiro, obrigando à construção de novo edifÃcio de excepcionais dimensões e notável valor artÃstico no Monte da Esperança, vinha criar condições mais favoráveis à difusão e engrandecimento das manifestações desse culto, como se vê pelas descrições que até chegaram das cerimónias da trasladação, ocorrida a 29 de Outubro de 1677, ainda antes de concluÃdas as obras.
Numa singular simbiose entre a devoção popular e a participação convicta das instituições civis e universitárias de Coimbra, a Santa Rainha continuará bem presente na memória e no coração dos Portugueses e das gentes desta Região do PaÃs. E uma das manifestações mais expressivas dessa presença iria ser, sem dúvida, o â??préstito de capelosâ? à igreja de Santa Clara, que se vinha realizando todos os anos a 21 de Outubro, em cumprimento da deliberação do claustro pleno da Universidade reunido em 21 de Março de 1626, deliberação confirmada quase um século depois, a 10 de Maio de 1716, passando no entanto o préstito para 3 de Julho, e devendo a Universidade assistir no dia seguinte à missa e demais celebrações da festa.
Por provisão de D. João V, datada de 6 de Junho de 1746 e dirigida ao Reitor D. Francisco da Anunciação, ordenava o Monarca que, na festa a que a Universidade assistia â??em préstitoâ?, o pregador fosse sempre um Lente de Teologia, escolhido pelo critério de antiguidade. Por carta de 30 de Junho de 1773, como que a significar que a solenidade dessa procissão se mantinha após a promulgação dos novos Estatutos [da Universidade], ordenava o Marquês de Pombal ao Reitor-Reformador D. Francisco de Lemos que ele continuasse a realizar-se.
D. João VI aprova e confirma o antigo costume do préstito, como se vê pela acta do claustro pleno realizado em 11 de Julho de 1823. Mas a guerra civil em breve iria causar natural perturbação no cumprimento da secular tradição. A partir, pelo menos, de 1866, era o Presidente da Câmara Municipal quem, directamente ou através do Reitor, convidava o corpo universitário a incorporar-se com as suas insÃgnias na procissão da cidade.
E importa não esquecer outros sinais muito expressivos dessa devoção, que consta quase sete séculos, sobretudo no que toca à difusão da sua iconografia, através das mais variadas formas, mas muito especialmente nos â??registosâ? e nos painéis de azulejo colocados em tantas casas, assim transformadas em santuários familiares desse culto, que pressupunha fervorosos actos de oração pública e privada, documentados por textos como a Novena para a Festa da AugustÃssima Rainha de Portugal Santa Isabel (Coimbra, 1762) ou as Preces e louvores dedicados à Rainha Santa (Coimbra, 1915). Culto esse que também se torna visÃvel nas romagens, cumprimento de promessas, invocações e actos de veneração que, em multidões, o Povo de Coimbra, de dois em dois anos, quando a sua Imagem desce à cidade, numa espécie de visita de bênção e de paz, lhe dirige confiante e agradecido.
São estes dados da História, que encontrou na Evolução do culto de D. Isabel de Aragão, de António de Vasconcelos (Coimbra, 1894), a sua melhor e mais completa expressão, e da mera observação da realidade quotidiana, que nos permitem compreender a dimensão, a importância e o significado espiritual e social que continuam a fazer, nos nossos dias, do culto prestado à Rainha Santa um fenómeno vivo, de extraordinária riqueza humana que constitui, sem sombra de dúvida, uma das maiores expressões de religiosidade popular em toda a Europa.
AnÃbal Pinto de Castro
Descendente da Casa Real de Aragão, Santa Isabel nasceu, muito provavelmente, em 11 de Fevereiro de 1270, em Saragoça. Onze anos depois, por procuração, era
realizado o seu casamento com Dom Dinis, consumado em Trancoso, em Junho de 1282.
Tornada Rainha de Portugal, Dona Isabel contemplaria Coimbra pela primeira vez em Outubro de 1282, cidade onde se recolheu após a viuvez e realizou muitas das práticas caritativas acompanhadas de prodigiosos milagres, que viriam a ter como expressão máxima a lenda da transformação do pão em rosas.
Falecida aos sessenta e seis anos, no dia 4 de Julho de 1336, em Estremoz, foi sepultada em Coimbra no dia 11 de Julho.
Mais de sete séculos passados sobre o seu nascimentoâ?¦ o que sabemos e o que desconhecemos sobre a vida de Isabel de Aragão? No enredo de datas opostas, interpretações múltiplas, lendas seculares e até acontecimentos fantásticos, é possÃvel, hoje, descobrir com verdade histórica os principais momentos da sua passagem pela terra durante cerca de 66 anos. Isabel, nome também de sua tia, santa e irmã da avó paterna, Dona Violante, nasceu, muito provavelmente, em Saragoça, Reino de Aragão, a 11 de Fevereiro de 1270. Era filha de Pedro III, o Grande, e de Dona Constança de SicÃlia.
Corria-lhe nas veias, pelo lado de seu pai, sangue das casas de Hungria e de Este, enquanto pelo lado materno descendia de Manfredo de Nápoles e SicÃlia e de Dona Brites de Sabóia, seus avós. A menina, uma entre vários irmãos, era bonita e atribuiu-se-lhe logo na infância, vivida em boa parte em Barcelona, o gosto pela oração, o poder cândido de gerar afectos e reconciliações, a bondade ingénua e a inteligência promissora. Não admira, pois, que estas virtudes tivessem desencadeado, em várias Coroas do Ocidente Cristão, o desejo forte de a colher como rainha. Recaiu, porém, a sorte, como se sabe, sobre a corte portuguesa. Com efeito, em 1279, subira ao trono D. Dinis, monarca culto, poeta, trovador, neto de Afonso X, o Sábio, célebre pelas suas Cantigas de Santa Maria.
O jovem rei contava, então, dezanove anos e ponderando, entre outras, razões de Estado, decidiu escolher para sua mulher a filha do Rei de Aragão. No dia 11 de Fevereiro de 1281, em Barcelona, realizou-se, por procuração, após copioso intercâmbio epistolar e documental, o matrimónio que seria consumado passado pouco mais de um ano, na Vila de Trancoso, no mês de Junho.
Entretanto, jornadas, festas, e cerimónias à parte, certo é que no fim desse ano de 1282 já Dona Isabel de Aragão, esposa legÃtima de D. Dinis, estava com a sua corte, em Coimbra, onde iniciará uma vida cheia de magnanimidade e santidade. Aqui, a menina casada se fez mulher, mãe, dos filhos Constança e Afonso, futuro Afonso IV de Portugal, rainha e santa.
Piedosa, de suprema caridade e devota particularmente da Virgem SantÃssima, de Santa Clara e de São Tiago, cujo túmulo visitou, em Junho de 1325, a vida terrena de Isabel permanecerá eternamente ligada à acção virtuosa de â??praticar o bem sem olhar a quemâ?. A sua memória é perpetuada pelas esmolas, oferendas, cuidados, curas e milagres, com que enchia as mãos e os corações de homens, mulheres e crianças pobres, enjeitados, famintos, leprosos, doentes, cegos. Paralelamente, com as suas preces e diplomacia, espalha a concórdia e a paz, ora entre o marido e o filho, ora entre este e o neto, ora entre reinos e outros parentes.
Precoce mas duradouro foi o seu casamento. Durou cerca de 44 anos e só a morte do Rei, no dia 7 de Janeiro de 1325, separou para sempre os cônjuges reais. Viúva, a Rainha Dona Isabel veste a partir dessa data o hábito humilde das religiosas de Santa Clara, â??um véu sem votosâ?, e fixa morada em Coimbra, ou seja, no paço que tinha junto do mosteiro das Clarissas, fundado por D. Mor Dias em 1283. Sobreviveu ao marido pouco mais de dez anos, chora a morte de netos e, em Dezembro de 1327, faz o seu segundo e último testamento pelo qual entrega o seu corpo, num túmulo de pedra branca, à igreja do mosteiro de Santa Clara, o seu mosteiro. Entre o paço e o convento, ou melhor, â??com um pé no mundo e outro na casa de Deusâ?, Dona Isabel ia juntando os deveres do trono aos prazeres e devoções dos altares, dos cantos e de Jesus Cristo. Sucediam-se os dias e as orações, os jejuns e as obras pias, a fadiga, e a velhice. Em Junho de 1336, Dona Isabel é informada de que seu filho iria bater-se em guerra com o neto D. Afonso XI de Castela. D. Afonso IV estava, então, com a sua corte em Estremoz e a Rainha, mãe e avó, apesar dos seus 66 anos de idade, empreende uma penosa jornada, de dezenas de léguas, de Coimbra até à quela terra alentejana. Chegou já doente e desfalecendo, pouco a pouco, na companhia de seu filho e nora Dona Beatriz, expirou a 4 de Julho. No dia seguinte, o Rei, dando cumprimento à s vontades últimas da mãe, ordena a trasladação do cadáver para Coimbra, onde chegou no dia 11. Sucedem-se, então, solenes exéquias e, por fim, o túmulo é depositado na capela que a Rainha havia mandado construir no convento de Santa Clara. Chegava para Dona Isabel um tempo novo. Com todos os puros de coração, bem aventurados por Jesus Cristo, ela precisava de subir ao Céu â??para ver mais longe e fundoâ?. Na terra, o povo começava a venerar os seus restos mortais, presta-lhe culto, acredita em milagres e na sua santidade. Por tudo isto, D. Manuel solicitou à Santa Sé a sentença de beatificação concedida pelo papa Leão X por Breve datado de 15 de Abril de 1516. Declara-se, então, fundada, na Diocese de Coimbra, o culto religioso da Beata Isabel difundido por todo o Reino em 1556 e fervorosamente praticado, sobretudo, pelas gentes da cidade.
Já no século XVII, a 26 de Março de 1612, procedeu-se à abertura do túmulo tendo declarado quem viu que se achava inteiro e incorrupto. A Rainha era Santa. Assim, passados pouco mais de dez anos, mais precisamente em 25 de Maio de 1625, o Papa Urbano VIII canoniza-a solenemente, enquanto o Rei Filipe III, no dia 14 de Julho do mesmo ano, proclama-a Padroeira de Portugal.
Maria José Azevedo Santos
No consentimento de Pedro III de Aragão para o casamento de sua filha com D. Dinis estava subjacente uma estratégia – o pai queria vera filha sair de sua casa como rainha, como reza o Livro da Vida e Milagres de Dona Isabel. Assim se cumpriu, pois D. Dinis era já rei quando reclamou a mão da infanta, como depois quando a veio a esposar e ocorreram bodas matrimoniais em Trancoso, no ano de 1282. E Isabel, ao ultrapassar este novo limes da sua vida, prestigiou-se. Se saía da afamada casa de Aragão, de uma família em que brilhavam memórias de reis conquistadores e ascendentes femininos aureolados com o carisma da santidade, entrava num reino da Península em que vitoriosos e valentes guerreiros cedo haviam firmado a sua independência e a tinham consolidado com território ganho aos infiéis e com gente que o valorizasse. Isabel viverá em Portugal num período áureo, ao lado de um monarca que soube concretizar, aos mais diversos níveis, a plena definição integradora desse reino e guindá-lo externamente ao lugar cimeiro na constelação das monarquias peninsulares. Projecto político de D. Dinis, o homem-rei, que soube conjugar tradição e inovação, ratificado e enobrecido por D. Isabel, a mulher-rainha, que soube ser santa e suserana.
D. Dinis herda um território já de todo reconquistado e no qual se incorpora em pleno, até com a sua infantil presença, o reino do Algarve pelo Tratado de Badajoz de 1267. Era preciso, ao tempo, e o rei sabia-o, completar a sua total definição e identificação. Jogando com a conflituosa conjuntura dos reinos hispânicos e aproveitando-se do seu papel de aliado forte, reclamado pelos partidos que disputavam o trono com Castela, D. Dinis consegue, ao dar o seu apoio a Fernando IV, reais benefícios. Faz incorporar na coroa portuguesa a região de Riba Côa e estrutura a fronteira entre Portugal e Castela ao longo do Guadiana, ao ser assinado, a 12 de Setembro de 1297, o tratado de Alcañices. E por ele se marcava também o destino de sua filha Constança, que ficava prometida a Fernando IV de Castela, assim se unindo por matrimónio os dois reinos. Com esta mesma intenção de prosseguir uma linha política de demarcação entre Portugal e Castela, quis afastar o seu irmão Afonso, aliado de facções castelhanas, de senhorios fronteiriços nevrálgicos, como Vide, Arronches e Portalegre. Com ele lutou em 1281, 1287 e 1299 até se firmarem trocas de terras e acordos de pazes, para os quais muito terá contribuido D. Isabel.
Desenhado o quadrilátero por terra e mar, necessário era cuidar da harmoniosa conjugação das suas gentes com espaço. D. Dinis tudo fez para arreigar homens à terra e ao tecido produtivo, assegurando-lhes a defesa e a estabilidade e incentivando a economia. Outorgou mais de oito dezenas de cartas de foral que dinamizavam o povoamento de vilas e lugares raianos e com menores atractivos, mormente a região de Trás-os-Montes. Dobrou essas liberdades conselhias com a concessão de mais de quatro dezenas de cartas de feira que revitalizavam e favoreciam o comércio interno. Reforçou a segurança e defesa dos lugares, em especial os de fronteira terrestre, reconstruindo muralhas e castelos e ordenando o levantamento de vilas de padrão geométrico na raia alentejana. Vigiando os perigos de um país de longa costa atlântica, criou uma marinha de guerra, liderada pelo saber e experiência de genoveses, como o almirante Manuel Pessanha, contratado em 1317. Implementou a agricultura, fomentando póvoas e a exploração dos seus reguengos, e cuidando dos lavradores, “esses nervos da terra e do reino”, como os apelidava. Mandou secar pântanos, potenciou as valências das matas, favoreceu a caça e a pesca, atendeu às riquezas marítimas de pescado e sal, e não descurou mesmo a exploração mineira. Dinamizou o comércio interno, mas também o externo, criando em 1293 uma bolsa de mercadores e estabelecendo acordos comerciais com os monarcas de Inglaterra e da França, que favoreciam a exportação dos nossos produtos para países atlânticos.
D. Dinis governou o reino com pleno conhecimento do espaço, nas suas possibilidades ou carências, itinerando com a corte por todo o território. Apoiou-se num aparelho burocrático numeroso e já especializado em oficiais do fisco, como os contadores, e da justiça, como os sobrejuízes, meirinhos, corregedores e juízes por el-rei. Com uma chancelaria organizada, deixou registo dos actos da sua governança e deu forma a um corpus legislativo de mais de uma centena de leis que regulavam a justiça, a propriedade e a moral social.
Na estruturação do ordenamento social D. Dinis teve de agir sobre diversas e contrárias forças sociais. Para conhecer a legitimidade de honras e coutos senhoriais, sobretudo em terras de Entre Douro e Minho e da Beira Baixa, exigiu inquirições – 1284, 1288 e outras na primeira década de Trezentos – que arrolaram abusos e determinavam devassas. Mas os nobres reclamavam das sentenças e a execução do decidido terá sido bem pouco eficaz.
Por sua vez a clerezia e instituições religiosas ameaçavam com o seu vasto património imóvel e isento os demais estratos sociais e as finanças do reino. D. Dinis promulgou leis de desamortização, que impediram a compra de bens de raiz a clérigos e ordens (1286, 1292, 1305) e interditavam aos institutos religiosos a herança dos bens dos seus professos (1291, 1299), legislação ousada que feria os interesses do clero. Com esta força social estivera o monarca em contenda desde os inícios do seu reinado, a qual só se apaziguou com a assinatura das concordatas de 1288 e 1289, que confirmavam os principais privilégios eclesiásticos, se bem que afastassem a recorrente arbitragem da Santa Sé, identificando o clero português, com os demais grupos sociais do reino. Esta mesma intenção integradora da clerezia teve D. Dinis ao obter do Papa a autorização de um Mestre Provincial, oriundo de Portugal, para a Ordem de Santiago, como mais tarde conseguiu a significativa vitória de transferir os bens nacionais dos Templários para a Ordem de Cristo, criada em 1319, que tanto viria a ajudar a financiar a empresa expansionista de Portugal.
Mas a identificação social e cultural do reino passou ainda pela dinamização do ensino, com a fundação de um Estudo Geral (1288-1290) em Lisboa, pela exigência, a partir da década de 90 do século XIII, de que os documentos emanados da chancelaria régia fossem escritos em português, pela regulamentação dos agentes da escrita, como eram os tabeliães e escrivães da corte, sendo o próprio monarca um cultor da poesia trovadoresca.
Este longo reinado de 48 anos agitou-se por vezes com querelas internas. D. Dinis enfrentou, como já dissemos, o seu irmão, como, em 1321-1322 e 1323-1324, o seu próprio filho e herdeiro D. Afonso. D. Isabel guinda-se então ao primeiro plano na sua incansável missão pacificadora. Para congraçar pai e filho entrará mesmo em campo de batalha, rogando pazes. Como, no fim da vida, acabará os seus dias em Estremoz, porque aí se desloca para conversar com seu filho, que se desentendera com Afonso XI de Castela, neto da rainha.
Denodadamente D. Isabel promoveu a concórdia entre forças desavindas. Por meio de emissários ou de uma insistente epistolografia procurou harmonizar o seu irmão Jaime II de Aragão com o seu genro Fernando IV de Castela. A sentença arbitral entre os reis de Aragão e Castela, que D. Dinis pronunciou, próximo de Tarragona, em 1304, teve, pois, a preparação e mesmo a presença da Rainha Santa. Sempre como Filha e Irmã, Esposa ou Mãe lutou pelas boas relações familiares, que inevitavelmente se projectavam no equilíbrio da política interna de Portugal e externamente no concerto dos poderes peninsulares.
Durante toda a sua vida cuidou, como mão e senhora, dos seus filhos próprios e dos bastardos do rei, das donas, donzelas e criadas da sua casa, educando-as e dotando-as para o casamento. Como rainha-santa, imbuída de uma espiritualidade franciscana, profundamente crística e humana, pautada pelos valores do amor, da humildade e da dádiva, alargou a sua magnanimidade de rainha a igrejas e mosteiros e a sua protecção piedosa os desvalidos do reino. Mandou construir e dotar mosteiros, igrejas, mercearias, albergarias, hospitais, gafarias, pontes e fontes. Deu pão aos famintos, vestes aos desnudados e esmola aos pedintes, estendendo o manto da sua misericórdia a pobres, doentes, velhos, prostitutas, cativos, presos e gente envergonhada e decaída do seu estado. Morto o rei em 1325, seguiu D. Isabel como peregrina até Santiago de Compostela, despojando-se dos seus bens e realeza. Quis irmanar-se às clarissas em vida religiosa e passou a viver no seu paço junto do mosteiro de Santa Clara de Coimbra, que ajudara a fundar. Nele ergueu o monumento em que se fez sepultar e nesse espaço de Santa Clara, que se impregnará da sua presença, fez também surgir um hospital que recebia pobres e doentes.
A rainha D. Isabel soube bem ombrear com o rei D. Dinis no governo do reino de Portugal. Politicamente geriu rentavelmente os seus bens e dirigiu com sabedoria a sua casa e clientela. Interveio, com eficácia, na harmonização dos dominantes do reino de Portugal e na concertação, por via diplomática e pessoal, dos interesses dos reinos peninsulares. Era uma mulher culta, que dominava o latim e a ciência da escrita e dos escritos, da mesma forma que dirigia com saber a construção de um mosteiro e do seu próprio túmulo.
Espiritualmente apresentou-se como um modelo de virtudes, devoção e prática cristãs que se espalharam em obra, levantando instituições religiosas e assistenciais, em intensa vida religiosa de oração e sacrifício, e em desvelo e carinho pelos “pobres de Cristo”.
Na vida, como no mito e na lenda, indissociavelmente a D. Dinis, rei lavrador e poeta, se unirá D. Isabel, a rainha protectora e santa.
Maria Helena da Cruz Coelho