Contexto Histórico
No consentimento de Pedro III de Aragão para o casamento de sua filha com D. Dinis estava subjacente uma estratégia – o pai queria vera filha sair de sua casa como rainha, como reza o Livro da Vida e Milagres de Dona Isabel. Assim se cumpriu, pois D. Dinis era já rei quando reclamou a mão da infanta, como depois quando a veio a esposar e ocorreram bodas matrimoniais em Trancoso, no ano de 1282. E Isabel, ao ultrapassar este novo limes da sua vida, prestigiou-se. Se saía da afamada casa de Aragão, de uma família em que brilhavam memórias de reis conquistadores e ascendentes femininos aureolados com o carisma da santidade, entrava num reino da Península em que vitoriosos e valentes guerreiros cedo haviam firmado a sua independência e a tinham consolidado com território ganho aos infiéis e com gente que o valorizasse. Isabel viverá em Portugal num período áureo, ao lado de um monarca que soube concretizar, aos mais diversos níveis, a plena definição integradora desse reino e guindá-lo externamente ao lugar cimeiro na constelação das monarquias peninsulares. Projecto político de D. Dinis, o homem-rei, que soube conjugar tradição e inovação, ratificado e enobrecido por D. Isabel, a mulher-rainha, que soube ser santa e suserana.
D. Dinis herda um território já de todo reconquistado e no qual se incorpora em pleno, até com a sua infantil presença, o reino do Algarve pelo Tratado de Badajoz de 1267. Era preciso, ao tempo, e o rei sabia-o, completar a sua total definição e identificação. Jogando com a conflituosa conjuntura dos reinos hispânicos e aproveitando-se do seu papel de aliado forte, reclamado pelos partidos que disputavam o trono com Castela, D. Dinis consegue, ao dar o seu apoio a Fernando IV, reais benefícios. Faz incorporar na coroa portuguesa a região de Riba Côa e estrutura a fronteira entre Portugal e Castela ao longo do Guadiana, ao ser assinado, a 12 de Setembro de 1297, o tratado de Alcañices. E por ele se marcava também o destino de sua filha Constança, que ficava prometida a Fernando IV de Castela, assim se unindo por matrimónio os dois reinos. Com esta mesma intenção de prosseguir uma linha política de demarcação entre Portugal e Castela, quis afastar o seu irmão Afonso, aliado de facções castelhanas, de senhorios fronteiriços nevrálgicos, como Vide, Arronches e Portalegre. Com ele lutou em 1281, 1287 e 1299 até se firmarem trocas de terras e acordos de pazes, para os quais muito terá contribuido D. Isabel.
Desenhado o quadrilátero por terra e mar, necessário era cuidar da harmoniosa conjugação das suas gentes com espaço. D. Dinis tudo fez para arreigar homens à terra e ao tecido produtivo, assegurando-lhes a defesa e a estabilidade e incentivando a economia. Outorgou mais de oito dezenas de cartas de foral que dinamizavam o povoamento de vilas e lugares raianos e com menores atractivos, mormente a região de Trás-os-Montes. Dobrou essas liberdades conselhias com a concessão de mais de quatro dezenas de cartas de feira que revitalizavam e favoreciam o comércio interno. Reforçou a segurança e defesa dos lugares, em especial os de fronteira terrestre, reconstruindo muralhas e castelos e ordenando o levantamento de vilas de padrão geométrico na raia alentejana. Vigiando os perigos de um país de longa costa atlântica, criou uma marinha de guerra, liderada pelo saber e experiência de genoveses, como o almirante Manuel Pessanha, contratado em 1317. Implementou a agricultura, fomentando póvoas e a exploração dos seus reguengos, e cuidando dos lavradores, “esses nervos da terra e do reino”, como os apelidava. Mandou secar pântanos, potenciou as valências das matas, favoreceu a caça e a pesca, atendeu às riquezas marítimas de pescado e sal, e não descurou mesmo a exploração mineira. Dinamizou o comércio interno, mas também o externo, criando em 1293 uma bolsa de mercadores e estabelecendo acordos comerciais com os monarcas de Inglaterra e da França, que favoreciam a exportação dos nossos produtos para países atlânticos.
D. Dinis governou o reino com pleno conhecimento do espaço, nas suas possibilidades ou carências, itinerando com a corte por todo o território. Apoiou-se num aparelho burocrático numeroso e já especializado em oficiais do fisco, como os contadores, e da justiça, como os sobrejuízes, meirinhos, corregedores e juízes por el-rei. Com uma chancelaria organizada, deixou registo dos actos da sua governança e deu forma a um corpus legislativo de mais de uma centena de leis que regulavam a justiça, a propriedade e a moral social.
Na estruturação do ordenamento social D. Dinis teve de agir sobre diversas e contrárias forças sociais. Para conhecer a legitimidade de honras e coutos senhoriais, sobretudo em terras de Entre Douro e Minho e da Beira Baixa, exigiu inquirições – 1284, 1288 e outras na primeira década de Trezentos – que arrolaram abusos e determinavam devassas. Mas os nobres reclamavam das sentenças e a execução do decidido terá sido bem pouco eficaz.
Por sua vez a clerezia e instituições religiosas ameaçavam com o seu vasto património imóvel e isento os demais estratos sociais e as finanças do reino. D. Dinis promulgou leis de desamortização, que impediram a compra de bens de raiz a clérigos e ordens (1286, 1292, 1305) e interditavam aos institutos religiosos a herança dos bens dos seus professos (1291, 1299), legislação ousada que feria os interesses do clero. Com esta força social estivera o monarca em contenda desde os inícios do seu reinado, a qual só se apaziguou com a assinatura das concordatas de 1288 e 1289, que confirmavam os principais privilégios eclesiásticos, se bem que afastassem a recorrente arbitragem da Santa Sé, identificando o clero português, com os demais grupos sociais do reino. Esta mesma intenção integradora da clerezia teve D. Dinis ao obter do Papa a autorização de um Mestre Provincial, oriundo de Portugal, para a Ordem de Santiago, como mais tarde conseguiu a significativa vitória de transferir os bens nacionais dos Templários para a Ordem de Cristo, criada em 1319, que tanto viria a ajudar a financiar a empresa expansionista de Portugal.
Mas a identificação social e cultural do reino passou ainda pela dinamização do ensino, com a fundação de um Estudo Geral (1288-1290) em Lisboa, pela exigência, a partir da década de 90 do século XIII, de que os documentos emanados da chancelaria régia fossem escritos em português, pela regulamentação dos agentes da escrita, como eram os tabeliães e escrivães da corte, sendo o próprio monarca um cultor da poesia trovadoresca.
Este longo reinado de 48 anos agitou-se por vezes com querelas internas. D. Dinis enfrentou, como já dissemos, o seu irmão, como, em 1321-1322 e 1323-1324, o seu próprio filho e herdeiro D. Afonso. D. Isabel guinda-se então ao primeiro plano na sua incansável missão pacificadora. Para congraçar pai e filho entrará mesmo em campo de batalha, rogando pazes. Como, no fim da vida, acabará os seus dias em Estremoz, porque aí se desloca para conversar com seu filho, que se desentendera com Afonso XI de Castela, neto da rainha.
Denodadamente D. Isabel promoveu a concórdia entre forças desavindas. Por meio de emissários ou de uma insistente epistolografia procurou harmonizar o seu irmão Jaime II de Aragão com o seu genro Fernando IV de Castela. A sentença arbitral entre os reis de Aragão e Castela, que D. Dinis pronunciou, próximo de Tarragona, em 1304, teve, pois, a preparação e mesmo a presença da Rainha Santa. Sempre como Filha e Irmã, Esposa ou Mãe lutou pelas boas relações familiares, que inevitavelmente se projectavam no equilíbrio da política interna de Portugal e externamente no concerto dos poderes peninsulares.
Durante toda a sua vida cuidou, como mão e senhora, dos seus filhos próprios e dos bastardos do rei, das donas, donzelas e criadas da sua casa, educando-as e dotando-as para o casamento. Como rainha-santa, imbuída de uma espiritualidade franciscana, profundamente crística e humana, pautada pelos valores do amor, da humildade e da dádiva, alargou a sua magnanimidade de rainha a igrejas e mosteiros e a sua protecção piedosa os desvalidos do reino. Mandou construir e dotar mosteiros, igrejas, mercearias, albergarias, hospitais, gafarias, pontes e fontes. Deu pão aos famintos, vestes aos desnudados e esmola aos pedintes, estendendo o manto da sua misericórdia a pobres, doentes, velhos, prostitutas, cativos, presos e gente envergonhada e decaída do seu estado. Morto o rei em 1325, seguiu D. Isabel como peregrina até Santiago de Compostela, despojando-se dos seus bens e realeza. Quis irmanar-se às clarissas em vida religiosa e passou a viver no seu paço junto do mosteiro de Santa Clara de Coimbra, que ajudara a fundar. Nele ergueu o monumento em que se fez sepultar e nesse espaço de Santa Clara, que se impregnará da sua presença, fez também surgir um hospital que recebia pobres e doentes.
A rainha D. Isabel soube bem ombrear com o rei D. Dinis no governo do reino de Portugal. Politicamente geriu rentavelmente os seus bens e dirigiu com sabedoria a sua casa e clientela. Interveio, com eficácia, na harmonização dos dominantes do reino de Portugal e na concertação, por via diplomática e pessoal, dos interesses dos reinos peninsulares. Era uma mulher culta, que dominava o latim e a ciência da escrita e dos escritos, da mesma forma que dirigia com saber a construção de um mosteiro e do seu próprio túmulo.
Espiritualmente apresentou-se como um modelo de virtudes, devoção e prática cristãs que se espalharam em obra, levantando instituições religiosas e assistenciais, em intensa vida religiosa de oração e sacrifício, e em desvelo e carinho pelos “pobres de Cristo”.
Na vida, como no mito e na lenda, indissociavelmente a D. Dinis, rei lavrador e poeta, se unirá D. Isabel, a rainha protectora e santa.
Maria Helena da Cruz Coelho