A vontade de deixar preservada para a posteridade a sua memória, levou a rainha Isabel de Aragão a promover o seu próprio túmulo, que destinou à igreja do mosteiro de Santa Clara de Coimbra. Por altura da sagração desta igreja, ocorrida a 8 de Julho de 1330, já se encontrava concluído o seu monumental ataúde, que se conservou vazio por mais seis anos. A escultura tumular assistiu, entre nós, com a realização deste túmulo à introdução de modificações morfológicas e plásticas que, em seguida, se difundiram originando um tipo de arcas fúnebres de grandes dimensões, paralelepipédicas, autónomas das paredes e, por isso, decoradas em todas as faces, que viriam a ser produzidas, no decurso desse século de Trezentos, em quantidade elevada.
A tipologia do sepulcro, mas, fundamentalmente, a sua decoração manifestam-se significativas relativamente ao defunto, à sociedade em que viveu e se inseriu e à sua posição na hierarquia do poder. A diferença do túmulo da rainha Santa relativamente ao que aqui se produzia e a sua qualidade plástica, podem explicar-se pela atribuição da sua autoria a mestre Pêro, um escultor de provável origem peninsular, talvez de Aragão como a rainha, que teve uma oficina activa, já individualizada, a trabalhar, ao tempo, na região de Coimbra. A contratação deste artista deve ter sido plausivelmente obra da rainha, personalidade de superior cultura e que sempre manteve contactos com a terra da sua naturalidade. Se não podemos afirmar, com absoluta segurança, a iniciativa desta contratação, não nos parece restarem dúvidas quanto à intervenção da soberana na personalização do seu túmulo que, pela sua característica de sarcófago isento, se impôs no interior do edifício religioso, concorreu para continuar a manter a defunta presente entre os vivos e invocar, à comunidade religiosa, a solidariedade dos sufrágios.
A iconografia do sarcófago revela uma singularidade, particularmente expressiva, na forma de representação da estátua jacente que radica, com toda a probabilidade, na participação da tumulada. Podemos considerar esta figuração plástica como a primeira representação iconográfica de Santa Isabel, se pensarmos na importância que o poder taumaturgo e intercessor atribuído aos Santos conferiu a este túmulo, convertendo-o em palco de milagres.
A opção de vestir o hábito mendicante, sem abraçar a Regra, e nele se fazer tumular, tornou-se um costume, frequente entre os estratos nobilitados, e exprime um claro investimento de procurara a obtenção da salvação, através de um acto material. A rainha Isabel, que também vestiu o hábito de Clarissa, após a morte do marido, fez-se representar com ele no seu jacente, com as mãos cruzadas sobre o peito, estendendo-se a direita sobre o livro das orações. Presa à cintura, uma bolsa, recheada de moedas e decorada com a vieira e a cruz simbólicas de Santiago, exprime uma clara referência às peregrinações que realizou ao túmulo do Apóstolo. A condição de peregrina, que quis celebrar no jacente, completa-se com o bordão, que segura com o braço direito, à maneira de um báculo, e se dispõe sobre as vestes, paralelamente ao cordão nodoso de clarissa.
A sua preocupação com a morte, que preparou através de uma vida cristã, recheada de orações, de obras de caridade e penitências, evidencia-se na temática escatológica, que constitui o tema fulcral da decoração tumular, e está referenciada metaforicamente, no jacente, na condição de peregrina. Esta constitui a grande singularidade deste túmulo, pois embora o cristianismo medieval apontasse a peregrinação, aos que ansiavam salvar-se, como uma das mais perfeitas formas de ascese, não se conhecem mais exemplos de estátuas jacentes de peregrinos. Dentro do mesmo ideal de peregrinação, que pretendeu exaltar, se pode inserir a itinerância dos seus irmãos dilectos – os franciscanos – que fez representar num dos frontais do seu túmulo.
Às características de clarissa da terceira ordem e de peregrina, Isabel de Aragão juntou no seu jacente, as de rainha, visto que, apesar de envergar o hábito de ordem de pobreza, a que se acolheu nos últimos anos de vida, não renunciou aos símbolos do seu poder terreno e embora as vestes sejam de clarissa, a coroa é de rainha e os escudos régios de Aragão e Portugal, espalhados pelo túmulo não permitem esquecer a sua alta estirpe e a sua condição na hierarquia do poder.
Ao escolher imortalizar-se num jacente de peregrina, a rainha Santa teve, seguramente, em vista a simbólica da peregrinação no sentido religioso de sacrifício purificador da alma em vista da salvação. Não podemos, contudo, deixar de atribuir à peregrinação o sentido mais amplo de meio de afirmação política no estrangeiro e oportunidade de trocas culturais, pois foi nesta acepção que os utilizou aquela que foi uma das mais destacadas rainhas dos nossos tempos medievos, que o povo e a Igreja quiseram elevar aos altares.
Francisco Pato de Macedo