A Cultura
A imortalidade da Rainha Santa está na recordação das suas virtudes mas está, igualmente, na lembrança da sua cultura, e dos seus vastos conhecimentos que, afinal, fazem jus à sua santidade, porque “a sabedoria não entrará numa alma maligna”.
No Reino de Portugal, nos fins do século XIII, podemos observar três centros principais de produção e difusão de cultura: as instituições religiosas (mosteiros, conventos, colegiadas e sés), a Universidade e a corte régia. Sob a marca, já predominante, do galaico-português, escrito e falado, D. Isabel contactou em Coimbra, e um pouco por quase todo o Reino, com mestres, bacharéis e doutores, bispos, cónegos e frades, arquitectos e físicos, homens, religiosos ou não, mas todos muito cultos. Recebeu ou expediu um número considerável de documentos como bulas, breves, cartas-missivas, doações, testamentos e outros actos escritos. Possuía uma chancelaria de que conhecemos um chanceler, Estêvão Dade, um escrivão, Domingos Martins e os selos, pendentes e de chapa, que usou para autenticar alguns dos seus documentos. Ainda que desconheçamos o grau da sua cultura gráfica, pois dela não chegou até nós qualquer testemunho, pode afirmar-se, como quase certo, que sabia escrever.
Na verdade, o meio cultural e religioso em que vivia era um forte estímulo para desenvolver as suas aptidões culturais e intelectuais. Desde logo, Dona Vataça, sua dama, e prima afastada, era mulher culta, de alta estirpe, possuidora de livros, escrivão e selo.
Contudo, seria D. Dinis a sua principal referência no campo das letras. Era poeta, trovador, fundara o Estudo Geral, estabelecera o galego-português como língua oficial do Reino e assinava com a própria mão as cartas que outorgava. Na verdade, D. Isabel, ainda muito jovem, acompanhou não só o processo de criação da Universidade a que seu marido ficará, para sempre, ligado como outor da “carta fundacional” de 1 de Março de 1290, mas também observou, ouviu, e até inspirou, o género poético musical característico da época, das cortes peninsulares, a canção trovadoresca. Com efeito, pela corte régia passaram muitos jograis e trovadores como Fernão Rodrigues Redondo, Estêvão Fernandes Barreto, Fernão Figueira de Lemos e tantos outros que faziam escutar as suas cantigas de amigo, de amor, ou de escárnio e mal-dizer.
Além disso, na cidade e termo de Coimbra tinham sede alguns dos mais notáveis centros de irradiação e circulação das culturas portuguesa e europeia, tais como os mosteiros de Santa Cruz, de Lorvão e a Sé Catedral. Nesse ambiente, é muito provável que tenha conhecido, pelos livros, nomes grandes, seus contemporâneos, como Roger Bacon, Dante, Petrarca, Marco Polo, entre outros. E ainda que não tenhamos qualquer notícia da sua biblioteca, é de admitir que tivesse possuído e até lido as vidas e obras de Santo Agostinho, de S. Bernardo, de D. Telo e S. Teotónio, de Santo António e até de Pedro Hispano, o Papa português, João XXI, que morreu tinha D. Isabel apenas sete anos de idade.
Não admira, pois, que o seu principal biógrafo, autor anónimo da Lenda ou Legenda da Rainha Santa, a descreva como uma mulher culta nas áreas mais diversas do saber. Conta que ela sabia além da língua materna, latim e linguagem (galego-português). Dos seus conhecimentos litúrgicos, bíblicos e musicais, ninguém ousará duvidar tal era a sua piedade, devoção e prática da lectio divina.
Não se pode duvidar, também, de que sabia de enfermagem, medicina e até, como diríamos hoje, de nutricionismo, como fica provado pela ementa que descreve para os homens e mulheres do hospital de Coimbra, que criou, nesta cidade, por carta passada a 12 de Março de 1328. São-lhe ainda atribuídos conhecimentos de engenharia e arquitectura revelados no acompanhamento da construção das casas do mosteiro de Santa Clara e até do seu túmulo.D. Isabel, Rainha de Portugal, mulher e Santa, culta, inteligente, diplomata, de personalidade forte, destemida, atributos que D. Dinis, em forma poesia, louvou assim:
«Pois que Deus vos fez, Senhora
Fazer do bem sempre o melhor
E dele ser tão sabedora
Em verdade vos direi:
Assim me valha o Senhor!
Érades boa para Rei!
E pois sabedes entender
Sempre o melhor e bem escolher,
Verdade vos quero dizer,
– Senhora que sirvo e servirei:
– Pois Deus assim o quis fazer,
Érades boa para Rei!»
Maria José Azevedo Santos