O culto das imagens e das relíquias ocupou, permanentemente, um lugar preponderante no quadro institucional da Igreja, visto que a percepção do divino se configurou, desde sempre, como uma das questões magnas do Cristianismo. Nos séculos finais da Idade Média, os laicos, ao implicarem-se de forma mais personalizada na vida espiritual, recorreram, frequentemente, a imagens e relíquias, contribuindo para a sua proliferação e trazendo o seu culto para a devoção privada.
O conjunto de peças de ourivesaria, conhecido com a designação de “tesouro da Rainha Santa”, que integra hoje a colecção do Museu Nacional de Machado de Castro, é a prova material da relevância que imagens e relíquias detiveram na sua forma particular de exercer o culto.
Em tempos góticos, a ausência do corpo de Cristo, que foi para o Céu, converteu os objectos ligados à sua paixão, essencialmente a sua Cruz, nos símbolos mais marcantes do Cristianismo. Por essa razão, o relicário do Santo Lenho, em coral e prata, com uma inscrição que alude ao Mistério da Santíssima Trindade, deve ter ocupado um lugar de preponderância no conjunto dos objectos devocionais de Isabel de Aragão. Os dois pequenos fragmentos do Santo Lenho, colocados em forma de cruz, encontram-se inseridos no relicário propriamente dito, de forma circular, que é suportado por um ramo de coral. O exotismo das formas agitadas e curvilíneas desta “árvore das águas” enquadra-se bem nas formas angulosas do gótico. O coral, de intenso colorido, é sustentado, de forma engenhosa, por dois encaixes prismáticos de prata, decorados com as armas portuguesas, assentes numa base em cruz aspada, apoiada em dois elegantes e expressivos leões de prata. No cruzamento da cruz, inseridas num círculo esmaltado, podem ver-se as armas de Aragão.
Um lugar de não menor relevo, deve ter ocupado, no conjunto dos objectos pertencentes à Rainha Santa, a imagem-relicário da Virgem com o Menino. Trata-se de uma imagem de vulto redondo de Nossa Senhora com o Menino ao colo, de 86 cm de altura, em prata branca e dourada, burilada e esmaltada, assente em leões. A mão direita do Menino estende-se em direcção ao local onde, no peito da imagem de Nossa Senhora, se encontram guardadas as relíquias. Esta imagem-relicário constitui uma peça da maior importância não só pela sua raridade enquanto objecto de ourivesaria, mas também pela possibilidade que dá de podermos aferir o valor atribuído à Virgem Maria pela devoção privada, no século de Trezentos. A pertença desta peça a Isabel de Aragão está atestada pela decoração heráldica do cinto da imagem, onde se podem ver, alternadamente, as armas de Portugal e de Aragão, em esmalte. Faz ainda parte deste tesouro uma Cruz processional, em prata branca e dourada, com braços em jaspe sanguíneo. No encontro dos braços, num nó quadrangular em prata repuxada está representado, de um lado, Deus Pai acompanhado do Tetramorfo, e do outro o Calvário. No pé da cruz, em botões losangonais dispõem-se, em alternância, as armas de Portugal e Aragão.
No tesouro desta rainha não se encontram só, como seria de esperar, os objectos devocionais, pois apesar da sua humildade, terá apreciado, tal como os da sua estirpe, as peças de adorno. É prova disso o colar de ouro e pedrarias, que foi pertença sua, e que completa as peças que se conservam do seu tesouro. Esta jóia, por ter sido se uso pessoal da Rainha Santa, não terá sido vista só como simples matéria, tendo-lhe sido lendariamente associado um carácter propiciatório e profilático e pedido às freiras de Santa Clara, continuadamente, o seu empréstimo, de modo a obter, por sua intercessão, favores divinos.
Não fazendo parte do designado “tesouro da Rainha Santa”, mas integrando as peças de seu inestimável legado, conta-se o bordão, de jaspe e prata, encontrado, no século XVII, sobre o ataúde onde se guardavam os seus restos mortais. Oferecido pelo arcebispo de Compostela à rainha Isabel, aquando da sua peregrinação a Santiago, o bordão em forma de Tau, tal como o do Apóstolo na representação escultórica do Pórtico da Glória da catedral de Compostela, é hoje pertença da Confraria da Rainha Santa Isabel. Apresenta uma singular empunhadura, em jaspe vermelho sanguíneo, rematada por duas cabeças de leão, em prata, que se encontra fixada à vara por dois triângulos de prata, decorados com trifólios recortados e vazados. Na, com alma de madeira revestida de prata, encontram-se gravadas as tradicionais vieiras, em prata dourada. Transformado, logo após trer sido descoberto, numa verdadeira relíquia, o bordão encontra-se guardado num estojo de prata, mandado fazer, nos inícios do século XVII, por D. Catarina de Noronha, abadessa do mosteiro de Santa Clara de Coimbra. O invólucro que encerra esta preciosa peça tem a forma de custódia de balaústre, com a parte superior composta por um ostensório oval, que permite ver a empunhadura.
As peças do “tesouro da Rainha Santa Isabel”, conjuntamente com o bordão de peregrina, representam a mudança estética que fez triunfar o gótico na ourivesaria, entre nós, e revelam-se fundamentais para o conhecimento da personalidade de Isabel de Aragão, bem como para a compreensão de formas de religiosidade privada, adoptadas por laicos abastados, no decurso dos séculos finais da Idade Média.
Francisco Pato de Macedo